BALLECKETT
Encontro entre os gestos do ballet e o desgostos de Beckett
Manifesto pela Ballecketteira
Ballet é o corpo. Beckett é a alma. Balleckett é a condição humana com os cotovelos e joelhos em movimento. Somos todas inacabadas; somos todas nem começadas – nos tornamos todas beckettescas. Ballet é a alma. Beckett é a virilha. O ponto de partida de muitas felicidades humanas é uma conversa. O ponto de partida da conversa é uma substância beckettesca que existe em cada gengiva, em cada clavícula e em cada calcanhar. Ballet é calcanhar. Entre o plágio e a referência existem apenas três pétalas de diferença. Vamos condenar a alguns anos de trabalhos forçados estas pétalas que tremem. Nunca temos coragem de copiar assinando o próprio nome. Nós, balleckettentes, trememos mais que as pétalas, somos varas verdes. Não assinamos o próprio nome em parte alguma. Assinamos o nome dos outros. Vamos condenar a alguns anos de trabalho forçado estas pernas que tremem: trabalho forçado pela construção de um mundo que seja 97% feito de água, fogo, terra, ar e aquela coisa macia com a qual se fazem entrelinhas dos textos de Beckett. Por isto nos juntamos pelos pores do sol, exigimos a abolição do capitalismo às 8 da noite de amanhã, instauramos o inferno do caos para substituir o inferno da ordem e ficamos a cada dia mais convencidas das seguintes noções:
1. A falta de dinheiro é um mal. Mas pode se tornar um bem.
2. A falta de falta de dinheiro é um mal. Mas pode se tornar um bem também.
3. Aquilo que já foi perdido, já foi perdido.
4. Não temos tempo para besteiras, temos alguns minutos para becketteiras.
5. Existem duas necessidades impostas pelas forças da existência: a necessidade que temos e a necessidade que temos de ter necessidade.
6. A intuição nos faz fazer bem umas loucuras.
7. Que podemos dizer da vida que nunca foi dito? Muitas coisas. Por exemplo, que ela nem sempre é um gomo solitário de mixirica madura.
Se nós fossemos bailacketterinas confundiríamos todos os princípios com os meios e esqueceríamos os fins. Assim como somos, tenham paciência. Nossos joelhos são nossos cotovelos, nossas rugas são nossas pernas, nossas cópias piratas de palavras de Beckett são nossas sapatilhas de ponta. Não queremos nada a não ser sacudir todos os átomos que sustentam a sensatez estabelecida. Não queremos nada a não ser explodir todas as células dos pensamentos prontos. Não queremos culpar a razão por nada, mas ela vai ter que se comportar por que nós não vamos nos comportar por ela: dançamos a suspeita vaga e indolente de que não tem sentido ter sentido. Improvisem provisoriamente: não adiem para o momento certo – o momento certo é o memento errado – queiram. Deixem para as estrelas as luzes apagadas e pelas as formigas pisem com a ponta dos umbigos. Improvisem tudo. Corpo é alma. Ballett é Beckett. Soltem estes grilhões coreografados. Ninguém nunca fez mais do que bailar becketts disfarçados. Arranquem os disfarces, saiam do chão com um plié, um elevé, um camier, um mercier.
Queremos os gestos puros ao invés dos gestos ratos, apinhados de ninharias. Queremos os gestos desordenados, despedaçados, despreparados, desmiolados, desintegrados, dissimulados, desconectados e, de preferência, desabitados. Não há limite para a improvisação, nem nas mãos, nem a coluna dorsal te conta que deves calar os pássaros e escutar a voz do noticiário na televisão. Não preste atenção – finja. Não finja – finja que finges. Queremos os gestos que não caberiam em nenhuma pista de dança, em nenhum palco de dança, em nenhuma dança. Queremos dançar os gestos que jogamos fora – só porque eles não prestam para nada.